Todo mês de agosto é a mesma coisa: o Renato Aragão faz cara de bom
moço, um monte de artistas da Globo vão fazer um show coletivo e a
emissora fica umas duas semanas falando de dois em dois minutos os
telefones para doar 10, 20 ou 40 reais. Tudo muito bonito, na teoria. O
dinheiro é doado para a UNESCO, que repassa para um monte de entidades.
Todos ficam felizes, a Rede Globo fica com uma imagem positiva perante a
sociedade e alguns projetos são ajudados. Aparentemente, está tudo bem.
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Criança Esperança 2011, fonte Rede Globo |
Mas, então, por que doar para o Criança Esperança é errado?
1) Falta de transparência no repasse dos recursos: por mais que a Rede Globo mostre como a sua
doação chega à UNESCO e depois é repassada às entidades cadastradas, não há informações detalhadas de como isso acontece. A própria
prestação de contas do projeto não discrimina os valores que foram encaminhados para cada entidade.
Não é, obviamente, o caso de acreditar em
conspirações que dizem que a Rede Globo desvia o dinheiro arrecadado.
Mas ficam algumas perguntas no ar. Um exemplo: de acordo com a própria
Rede Globo, foi arrecadado
um total de R$ 17.762.610,91
ano passado, e, de acordo com a própria prestação de contas do projeto,
foi investido o total de R$ 17.263.278,00. Onde estão os R$ 499.392,91
restantes?
2) Excesso de burocracia: se você olhar a
lista dos projetos apoiados no
último ano, vai ver coisas muito interessantes: orquestras, projetos em
favelas, projetos contra violência doméstica, bastante coisa legal.
Além disso, 86 projetos foram beneficiados, 56 deles com mais de R$ 100
mil. Só que, ao ver a convocatória para os projetos, os requisitos são:
- Ser legalmente constituída no País (ter personalidade jurídica);
− Ter no mínimo três anos de fundação e atuação;
− Ter experiência na área temática proposta;
- Estar inscrita no Conselho Municipal e/ou Estadual e/ou Nacional de
sua área de atuação (conselhos de Assistência Social, conselhos dos
Direitos da Criança e do Adolescente, conselhos de Educação, conselhos
de Saúde); e
− Apresentar contrapartida para o desenvolvimento do projeto.
Isso limita bastante o número de projetos
“apoiáveis”, apesar de ser um mecanismo compreensível para evitar
fraudes. Mas o que mais atrapalha é justamente o fato de que deve haver
todo um processo de seleção de projetos em entidades consolidadas para
que a Rede Globo repasse o dinheiro (lembre-se, não sabemos critérios e
valores por entidade) à Unesco e, depois, da Unesco, esse dinheiro seja
repassado às entidades. Se as pessoas fizessem as doações diretamente às
entidades (que são pessoas jurídicas e tem contas para receber tais
doações) todo esse processo seria evitado.
3) Excessiva fragmentação e doação sem saber a destinação do dinheiro: as
pessoas leigas acham que Criança Esperança e Teleton são “a mesma
coisa”. Não são. No Teleton você tem uma única entidade beneficiada (A
AACD), uma meta de doações (
R$ 26 milhões, em 2013)
e um projeto prévio, que normalmente é a construção de um novo hospital
para o público-alvo da AACD (crianças com necessidades especiais). Tudo
com um foco e um objetivo específico.
No Criança Esperança não é assim: você
não sabe as entidades que serão beneficiadas quando faz a doação. Nem
mesmo quantas entidades serão beneficiadas. São dezenas de projetos
pontuais, e a auditoria do que é feito com o valor é muito mais difícil.
A excessiva fragmentação, além de favorecer a corrupção, acaba
privilegiando os projetos de curto prazo, uma vez que o cadastramento de
entidades apoiadas é anual e a entidade nunca sabe se o seu projeto
será apoiado no ano seguinte.
4) Disseminação da cultura de filantropia na classe média, e não na classe alta:
hoje o termo “filantropia” se confunde com o termo “caridade” e abrange
diversas organizações religiosas. Mas em sua origem como “política
ordenada de doações”, no Império Romano, no século IV, era um termo
pagão utilizado para “concorrer” com a caridade praticada pelos
cristãos.
A filantropia moderna, por sua vez, não
deixou o caráter de “política ordenada de doações”. Mas, no Brasil,
sempre se confundiu com o próprio termo “caridade”. De acordo com
Silvana Maria Escorzim:
Historicamente no Brasil as ações
filantrópicas estiveram arraigadas à concepção caritativa de ajuda ao
próximo sob o prisma da moral cristã, na qual há o reconhecimento do
valor da pobreza como redentora dos pecados.
Essa mentalidade religiosa de ajuda ao
próximo foi decisiva para definir o caráter da filantropia no Brasil. As
doações no Brasil são feitas, em sua maioria, pela classe média. Muitas
delas de maneira informal. E a maioria das doações se divide em dois
tipos: as que são feitas para instituições religiosas e as que são
feitas para projetos como o Criança Esperança.
E aí é que está o problema. Programas
como o Criança Esperança ajudam a eternizar o brasileiro de classe média
como ator principal da filantropia no país. Ao contrário do que ocorre
nos EUA, por exemplo, em que empresários são responsáveis pela maior
parte do volume de doações para filantropia – e em geral para
instituições específicas, como universidades.
Existem outras questões que agravam o quadro, como a
burocracia para doações às universidades no Brasil e
a ingerência, nos projetos, de empresários que investem no terceiro
setor em busca de resultados rápidos. Mas o fato é que o Criança
Esperança, como órgão da Rede Globo associado à UNESCO, só contribui
para difundir no Brasil essa cultura de que quem tem que fazer
filantropia é a classe média, e não os ricos.
Observação: não é que os
ricos norte-americanos sejam bondosos. A filantropia tem motivos muito
específicos por lá. Rockefeller e Carnegie passaram as últimas décadas
de vida praticando filantropia para tentarem recuperar suas imagens,
desgastadas pelo rótulo de empresários monopolistas. Filantropia, em
geral, é uma forma das empresas e empresários melhorarem suas imagens
com a sociedade.
Além disso, há uma diferença tributária
importante. Enquanto no Brasil a taxa de inventário sobre o patrimônio,
quando alguém morre, é de 4%, nos EUA essa taxa chega a 50%, podendo ser
abatida por doações. A taxação de fortunas no ato da herança, além de
impedir a eternização de aristocracias, é um poderoso instrumento de
incentivo às ações de filantropia por parte das classes mais altas (mas o
projeto do Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto na Constituição de
1988, segue sem nem ter sido apresentado no Congresso)
5) Não é caridade, é marketing: Rockefeller, além de um grande filantropo, foi o inventor das Assessorias de Imprensa (que hoje
empregam 68% dos jornalistas do Brasil).
E tudo isso tinha um grande objetivo, além de “fazer o bem para o
próximo”: melhorar sua imagem, corroída por políticas monopolistas
detratórias, junto à sociedade.
Com a Rede Globo também é assim. Da mesma
forma que ocorre com a grande maioria das empresas que fazem trabalhos
de filantropia ou de “responsabilidade social”: em geral, são apenas
iniciativas para melhorar a imagem dessas empresas ou desses
capitalistas. Você vê a preocupação social sobrepujar o interesse
empresarial apenas em alguns poucos casos, como, por exemplo, o da
Fundação Bill & Melinda Gates,
que é a maior fundação de caridade do mundo, atualmente, e faz questão
de se manter institucionalmente separada da Microsoft, empresa
controlada por Bill Gates.
Portanto, quando você está doando para o
Criança Esperança, só está contribuindo para que a Rede Globo mantenha
uma imagem institucional positiva perante a sociedade. E é basicamente
para isso que a emissora faz uma campanha tão intensa.
Conclusão
Quer fazer uma doação de R$ 10, 20 ou 40?
Faça para uma instituição que você conhece, e não para uma empresa que
está fazendo um show beneficente
e cobra ingressos de R$ 40 nele.
Ou, senão, faça melhor: doe para um morador de rua. Ele certamente
ficará mais grato e fará um uso melhor. Vamos parar com esse preconceito
de “ah, eu só dou comida para moradores de rua, dinheiro nunca, vai
saber o que ele vai comprar”. Quando você dá algo para alguém não a
maior mesquinhez possível é tentar decidir o que a pessoa deve fazer com
aquilo.
Não é que a filantropia seja errada. Pelo
contrário, ela deve sempre ser feita. O próprio Teleton é um projeto
louvável. Só que o Criança Esperança incorpora um monte de atitudes
condenáveis sem dar o devido retorno para a sociedade. Quer doar? Tem
um monte de entidades filantrópicas por aí, e a grande maioria delas precisa de sua doação mais do que o show apresentado pelo Renato Aragão.
http://leorossatto.wordpress.com/2013/08/31/por-que-nao-doar-para-o-crianca-esperanca/#comment-6792